terça-feira, 6 de setembro de 2011

A professora no cinema

No último final de semana assisti ao filme "Professora sem classe", em cartaz nos cinemas multiplex da cidade. Compartilho as reflexões que seguem, maneira que encontrei de expressar meu desacordo e preocupação com a forma como os sujeitos da educação são representados. Penso que a despeito de ser uma comédia, não podemos nos furtar do olhar atento e crítico.

A PROFESSORA NO CINEMA
Natália Barros
Encontra-se em cartaz, nos cinemas multiplex da cidade, o filme “Professora sem classe”, do inglês, Bad Teacher. Com roteiro de Gene Stupnitsky e Lee Eisenberg, estrelado pela atriz norte-americana Cameron Diaz e dirigido por Jake Kasdan, apresenta como enredo principal a história de Elizabeth Halsey, professora de Literatura em Chicago, que tem por objetivo maior da vida a conquista de um marido rico. Estonteantemente bonita e aparentemente segura do poder físico que exerce sobre os homens, Elizabeth possui, entretanto, um enorme senso de inferioridade originário do fato de não possuir seios grandes, no seu entendimento, característica fundamental e estratégica para alcançar seu homem ideal. Uma escola pública é o espaço das práticas da professora - absurdamente inacreditáveis - para conseguir o dinheiro suficiente para colocar prótese de silicone nos seios. É também a escola o lugar de embate entre Elizabeth e Amy Squirrel, professora de geografia, na disputa por um colega de trabalho, jovem, bonito e rico. “Professora sem classe” tem classificação indicativa para maiores de 18 anos (menores acompanhados dos pais são liberados) e, segundo os críticos de cinema, faz parte da leva de filmes que não se preocupa mais com o uso dos palavrões, drogas e sexo em cena, pois Hollywood descobriu que há público suficiente para lotar as salas de cinema mesmo com classificação indicativa alta.
A sala do cinema - onde tive o desprazer de assistir ao filme na última sexta-feira (02.09) - estava repleta de jovens em idade escolar, que viram desfilar na sua frente imagens e representações de homens e mulheres, professores e professoras e da escola, carregadas de preconceitos e estereótipos. Embora seja um filme classificado como comédia romântica e alguns críticos destaquem seu caráter declaradamente “politicamente incorreto”, entendo que não é fora de propósito tecer algumas reflexões sobre a maneira como a personagem, seus pressupostos éticos e seu espaço de atuação profissional são apresentados ao público. Representações tão complexas quanto problemáticas por seu poder de construção de subjetividades e definições de valores em relação ao mundo. Conduz as minhas reflexões o entendimento do cinema não apenas como parte integrante da indústria cultural, sujeito às demandas de mercado, mas também o seu caráter de experiência estética e de potencial formativo e, por esses motivos, merecedor de um olhar atento por parte dos educadores.
A maneira como a mulher é apresentada na trama é o meu primeiro ponto de reflexão. É visível como, apesar de todos os debates e embates do feminismo para transformar as relações entre homens e mulheres, a questão da representação feminina ainda é pauta não esgotada e urgente de ser analisada. A busca do homem ideal, do outrora príncipe com cavalo e castelo, ainda é o tema favorito e explorado pelos romances de Hollywood. Apesar do desfile de mulheres bem resolvidas profissionalmente, modernas no vestir e na maneira de lidar com o mundo, nos deparamos constantemente com a insistente visão do homem e do amor como motores da vida das personagens, sendo o homem o que define e justifica sua existência. Embora agora elas tomem a iniciativa, não neguem seus desejos e exijam seu orgasmo, só encontram a felicidade na companhia dos “heróis”, homens que as salvam da jornada dupla de trabalho, do estresse da competição do mundo contemporâneo e de uma vida solitária ou compartilhada apenas com amigas. Esse modelo de feminino não é diferente em “Professora sem classe”, acrescido da ideia das mulheres como interesseiras e da premissa da necessidade do dinheiro masculino para que essas possam construir uma vida confortável ou alcançar seus desejos. Imagens não muito distantes das que circulavam na imprensa do começo do século XX. Relações superficiais entre homens e mulheres, baseadas na busca por sexo e dinheiro é a tônica do filme, que não perdoa nem a possibilidade de um romance verdadeiro e ingênuo entre um adolescente e sua colega de classe. O amor, a sensibilidade do jovem, sua família equilibrada e seu comportamento tímido são ridicularizados ao extremo e o encantamento inicial do treinador de educação física pela professora Elizabeth vai transmutando-se numa caçada sexual ao longo da narrativa. Moralismos à parte, são representações que não contribuem para o diálogo sobre amor e sexo entre os sujeitos e na construção de relações mais saudáveis entre os gêneros.
Como se não bastasse esse olhar a-histórico, cristalizado e naturalizante sobre as relações de gênero e sobre o feminino, o filme comporta representações sobre a prática docente e o espaço escolar que considero distorcidas e preocupantes e que são agora meu segundo ponto de reflexão.
No filme, Elizabeth não exerce efetivamente sua função. Ocupa todo seu horário em classe com exibição de filmes para os alunos. Dorme em sala, é mal educada, pratica atos ilícitos dentro e fora da escola (usa drogas, rouba,frauda exames escolares), humilha seus alunos e alunas e manipula todos ao seu redor para alcançar o dinheiro suficiente para colocar o silicone nos seios. O diretor da escola é apresentado como um sujeito relapso e ingênuo, incapaz de supervisionar e coordenar as atividades do corpo docente, pois se preocupa apenas com sua coleção de golfinhos. A professora Amy, comprometida com a escola, com o ensino e aprendizagem de seus alunos, aparece como a chata da história, exigente e desequilibrada emocionalmente. Grosso modo, todo o corpo docente aparece como sujeitos emocional ou socialmente desequilibrados. A escola é um hospício. Os atos de corrupção e desonestidade praticados no filme não são punidos e a lógica do vença o mais esperto predomina. A própria professora, desonesta, fútil e hipócrita aparece como conselheira dos jovens em vários momentos, transmitindo valores pra lá de questionáveis.
Depois de tantos filmes sobre professores e escolas (a exemplo de Escritores da Liberdade, Nenhum a Menos, Sociedade dos Poetas Mortos, Clube do Imperador, O Sorriso de Monalisa, Adorável Professor, Ao Mestre com Carinho, O Grande Desafio) ressaltando o papel da escola na construção de um mundo melhor, no significado dos professores na transformação da vida de seus alunos, na necessidade da escola ser um microcosmo fundamental para forjarmos relações humanas e sociais mais justas, que virada significa a produção e exibição de “Professora sem classe”? Que projetos entram em jogo na escolha desses roteiros? Num contexto de insistente e contínua crise da escola e de redefinição das relações aluno-professor, num mundo onde os laços humanos tornam-se cada vez mais fluidos e valores e práticas são relativizados ao sabor dos interesses individuais, quais as implicações das ideias postas em movimento no referido filme? Por que essa maneira de olhar sobre a escola e os professores está em circulação?
Saber que os sujeitos não são receptores passivos, que podem transformar e ressignificar as imagens do cinema, pode ser um alento. No entanto, penso que nem sempre os jovens conseguem empreender um debate crítico sobre os produtos oferecidos pela indústria cultural. Nem sempre a própria escola tem se aproximado do mundo contemporâneo e das novas práticas e linguagens construtoras da subjetividade dos nossos jovens escolares, nem sempre tem debatido e criticado representações como as divulgadas por esse filme, ou pelos meios de comunicação que tendem a estereotipar ou reduzir a importância da escola, dos docentes, da educação no mundo contemporâneo. É bom ressaltar que o cinema é uma arte da memória, individual, coletiva, histórica. Participa da história não só como técnica, mas também como arte e ideologia, é um registro que implica mais que uma maneira de filmar, por ser uma maneira de reconstruir, de recriar a vida.
O filme “Professora sem classe” ridiculariza a educação ao colocar os sujeitos da escola, jovens e adultos, professores e alunos, em situações de desrespeito a valores como honestidade, autoridade, solidariedade. Coloca em xeque a educação quando representa os profissionais como sujeitos desequilibrados e sem caráter. Lamento a circulação desse tipo de narrativa e considero necessário expressar nosso descontentamento com representações como às postas em movimento, ainda mais quando sabemos o quanto a identidade docente tem sido discutida, questionada e nossa profissão desvalorizada. Como a filósofa Hannah Arendt, acredito que a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos jovens, é onde preparamos esses jovens para empreenderem algo novo e imprevisto, onde fornecemos os recursos para a tarefa de renovação de um mundo comum .
“Professora sem classe” não tem a menor graça. Não considero o espaço escolar um mundo à parte da realidade, nem considero os docentes como sujeitos perfeitos e imunes à inversão e esfacelamento de valores que predominam no mundo contemporâneo, mas apesar de todos os problemas, crises e limitações, a educação, a escola e os professores não merecem as caricaturas divulgadas no filme, pois, lidando com o passado e o presente, com a tradição e a renovação, contribuem na crítica e reconstrução do mundo em que vivemos.

Recife, 04 de setembro de 2011.

2 comentários:

  1. Adorei o seu texto professora Natália. Principalmente por que problematiza algo que nos perpassa as vezes de forma tão sutil que não a percebemos. A construção dessas subjetividades através do cinema, novelas e entretenimentos em geral, que reforçam as hierarquias de gênero, e esteriótipos preconceituosos.Como educadores não podemos fechar os olhos para essas reproduções que sobretudo são "consumidas" por nossos alunos cotidianamente.

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  2. Olá, professora Natália! Visitei o seu blog um dia antes de ler esse texto, discutido na aula da professora de geografia. O texto está muito bem escrito e apresenta ótimos argumentos. Em classe, houve confronto de ideias - sempre há - de modo que enquanto alguns partilharam de sua opinião e outras a acharam meio que "exagerada".

    Particularmente, concordo com a afirmação de que o objetivo principal da obra é satirizar o espaço escolar, partindo de situações fictícias. Por outro lado, ao me colocar em seu lugar como mestre, não há como negar que exista uma certa indignação.

    Luis Fhilipi Carvalho
    Aluno do Colégio de Aplicação

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